SEDE DE SENTIDO: Como Transformar o Vazio da Abstinência em um Chamado à Autenticidade
FLUIR
Rafa Pessato
4/25/2025
Quando a sede não é de bebida
A abstinência, para muitos, é o fim da festa. É o momento em que as luzes se acendem, a música para e tudo o que resta é o chão pegajoso e o eco dos próprios pensamentos. Mas e se esse aparente fim fosse, na verdade, um portal? E se o desconforto do vazio que se instala ao se afastar do álcool não fosse um inimigo, mas um guia? Este artigo propõe uma mudança de perspectiva: ao invés de simplesmente preencher o espaço deixado pelo álcool com substituições rápidas — novos hábitos, novos vícios, novas distrações —, por que não escutar o silêncio e caminhar rumo ao que ele revela? Por que não entender a abstinência não como privação, mas como oportunidade de transformá-la em sobriedade e reencontrar a própria autenticidade?
O VAZIO: UM CAMPO FÉRTIL DISFARÇADO DE DESERTO
É natural que, ao retirar algo que ocupava um espaço central na rotina e na identidade — como o álcool — surja uma sensação de vazio. Esse “buraco” não é apenas psicológico ou emocional; ele é também existencial. O álcool, muitas vezes, vai além de um simples hábito: ele pode representar um amortecedor contra a dor, um escudo contra a vulnerabilidade, um facilitador de conexões sociais ou uma ferramenta para escapar de si mesmo.
Assim, quando esse recurso desaparece, nos vemos diante de nós mesmos com uma nitidez quase brutal. É aqui que a maioria tenta agir rapidamente: preencher o vazio com outras atividades, mergulhar em novos projetos, religar-se a doutrinas, correr atrás de performances. Tudo para não encarar o silêncio. Mas o silêncio tem algo a dizer.
O vazio não é um erro. Ele é uma chance. É um útero simbólico, escuro e misterioso, onde novas verdades podem ser gestadas. É no desconforto que as perguntas reais começam a emergir: quem sou eu sem isso? o que estou evitando sentir? o que verdadeiramente me sustenta?
A ABSTINÊNCIA COMO RITUAL DE PASSAGEM
Todo rito de passagem exige uma travessia. A abstinência, quando vivida conscientemente, se torna esse rito — uma ponte entre quem se era e quem se está se tornando. Ao invés de ser apenas uma fase de “contenção”, ela pode ser ressignificada como um tempo sagrado, de escuta, de questionamento, de transição.
Na psicologia arquetípica, há a figura do “deserto simbólico” — aquele lugar para onde o herói é lançado antes de renascer. É lá, longe das distrações e dos confortos, que ele encontra os próprios demônios, mas também seus dons esquecidos. A abstinência é esse deserto moderno: um lugar de prova, mas também de revelação.
Quando não se corre para preencher o vazio imediatamente, ele começa a falar. Ele mostra feridas antigas, desejos reprimidos, vocações abafadas, máscaras sociais. Ele revela os contornos do que é autêntico, justamente por confrontar tudo o que era muleta.
A ILUSÃO DA SUBSTITUIÇÃO: POR QUE TROCAR UMA FUGA POR OUTRA?
Muitas abordagens tradicionais ao alcoolismo ou à abstinência se concentram em substituições. O álcool é retirado, mas entra o café, a religião, o crossfit, o trabalho, o açúcar, a performance de sobriedade. Ainda que essas substituições possam oferecer apoio temporário, elas raramente promovem a transformação real. Isso porque não enfrentam o núcleo do problema: a desconexão com a própria verdade interior.
Substituições rápidas são tentadoras porque dão a ilusão de movimento e controle. Mas elas operam na superfície. São como plantar flores artificiais num solo que ainda não foi arado. A verdadeira transformação exige pausa, coragem, escuta — e uma disposição para ficar no incômodo tempo suficiente para que ele revele algo novo.
AUTENTICIDADE: UM CHAMADO QUE NASCE NO SILÊNCIO
Ser autêntico não é simplesmente “ser você mesmo” de maneira impulsiva. É um processo de descoberta. É ouvir o que realmente pulsa no fundo do ser, para além dos condicionamentos, dos papéis sociais, das expectativas externas. E esse processo, quase sempre, só se torna possível quando algo se quebra. Quando a armadura cai. Quando a anestesia acaba.
O vazio da abstinência pode, assim, ser entendido como o início desse chamado. Ele convoca a pessoa para um mergulho profundo, para além da superfície das distrações, até o coração do que é real. E esse real, embora assuste no começo, é libertador. A autenticidade não se trata de uma identidade pronta, mas de um movimento contínuo de alinhamento entre o que se sente, o que se acredita e o que se faz.
ESPIRITUALIDADE SEM DOGMA: UM NOVO MODO DE SE RELACIONAR CONSIGO
Ao trilhar o caminho da autenticidade, muitas pessoas redescobrem algo que não é necessariamente religioso, mas é profundamente espiritual: a sensação de estar em casa dentro de si. Essa espiritualidade não precisa de templos, mas de presença. Ela não se impõe com mandamentos, mas se revela no silêncio. É uma experiência de unidade, de conexão com algo maior — que pode ser chamado de inteligência superior, divindade ou outro nome que você achar melhor.
Nesse sentido, o vazio se torna sagrado. Ele não é uma ausência a ser temida, mas uma abertura a ser vivida. É nesse espaço limpo, sem ruído, que o ser pode finalmente escutar aquilo que antes era abafado pelo álcool: o chamado da vida pedindo mais presença, mais verdade, mais entrega.
CAMINHOS PRÁTICOS PARA VIVER A ABSTINÊNCIA COMO UM CHAMADO
Pratique a escuta interna: Em vez de tentar se distrair, sente-se com o desconforto. Pergunte a ele o que tem a dizer. Meditação, escrita reflexiva e terapia podem ajudar nesse processo.
Reveja suas relações: Quais vínculos foram sustentados pelo álcool? Quais ainda fazem sentido? Esse é um bom momento para reconstruir laços a partir de afinidades verdadeiras.
Desconstrua seus papéis: Quem você era com álcool? Quem está emergindo agora? Essa reconstrução de identidade leva tempo, mas é libertadora.
Crie rituais de presença: O álcool muitas vezes ocupava o lugar de um “ritual”. Substituí-lo por rituais conscientes — como caminhar ao ar livre, cozinhar com atenção, ouvir música de forma plena — pode trazer significado ao cotidiano.
Aceite a lentidão: A autenticidade não vem rápido. Ela é artesanal, construída dia após dia, com erros, acertos e muito autoconhecimento.
O QUE VOCÊ ESTÁ REALMENTE BUSCANDO?
A sede que leva ao álcool nem sempre é física. Muitas vezes, é uma sede de sentido, de pertencimento, de verdade. Quando se decide abandonar o álcool, não se está apenas deixando uma substância. Está-se aceitando um convite para olhar de frente essa sede profunda — e talvez, pela primeira vez, escutar o que ela realmente pede.
Transformar o vazio da abstinência em um chamado à autenticidade não é fácil. Mas é um dos caminhos mais nobres que alguém pode trilhar. Porque, no fim das contas, viver de forma sóbria e autêntica é o maior ato de coragem — e também a maior fonte de liberdade.