POR QUE A VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS NÃO É PROIBIDA no Brasil, apesar de seus danos?

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Rafa Pessato

4/7/2025

O álcool é mais do que uma simples substância psicoativa legalizada. Ele é um elemento cultural, um produto histórico e um motor econômico. Seu consumo está presente em rituais religiosos, encontros sociais e momentos de celebração desde tempos imemoriais.

Hipócrates, considerado o pai da medicina, receitava vinho para tratar quase todas as doenças. O álcool sempre esteve associado a cura, prazer e socialização. Hoje, essa associação é reforçada pela indústria de bebidas, que investe fortunas em publicidade para consolidar a ideia de que beber é sinônimo de felicidade, diversão, liberdade e amizade.

Mas se os danos do álcool são inegáveis, por que sua venda não é proibida? E mais do que isso: como mudar uma cultura que existe há milênios?

A intenção deste artigo não é fornecer respostas prontas, mas provocar uma reflexão sobre a relação entre a legalidade do álcool, sua influência cultural e a responsabilidade individual de escolher beber ou não.

O ÁLCOOL COMO TRADIÇÃO: UM HÁBITO ENRAIZADO NA CULTURA

O consumo de bebidas alcoólicas remonta a antes de Cristo. Civilizações antigas, como egípcios, gregos e romanos, utilizavam o álcool não apenas para o lazer, mas também como parte de rituais religiosos e tratamentos médicos. No Brasil, desde o período colonial, a cachaça se tornou um símbolo da identidade nacional.

Esse histórico faz do álcool um produto que transcende sua função básica. Ele carrega um peso cultural difícil de ser desmontado. É socialmente aceito, incentivado e romantizado. Na publicidade, nas rodas de amigos, nas festas de família, a bebida é apresentada como um ingrediente essencial para a felicidade e a integração social.

Esse fator cultural torna a proibição do álcool não apenas uma questão legislativa, mas também uma barreira comportamental. Diferente de outras drogas ilícitas, o álcool não é visto como um problema até que seus efeitos negativos se tornem visíveis. E, mesmo quando isso acontece, o senso comum muitas vezes atribui a culpa ao indivíduo e não à substância.

O FATOR ECONÔMICO: A BEBIDA ALCOÓLICA COMO MOTOR FINANCEIRO

Além do peso cultural, o álcool é um grande negócio. A indústria de bebidas movimenta bilhões de reais anualmente e gera milhões de empregos diretos e indiretos.

Segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a indústria de bebidas alcoólicas representa aproximadamente 2% do PIB brasileiro. Além disso, a arrecadação de impostos sobre a venda de bebidas alcoólicas contribui significativamente para os cofres públicos. Em 2023, o governo arrecadou R$ 435,7 bilhões com tributos como PIS/Pasep e Cofins, que incidem sobre diversos produtos, incluindo o álcool (gov.br).

Por outro lado, os custos sociais do consumo de álcool também são elevados. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estima que o Brasil gasta R$ 18,8 bilhões por ano em tratamentos médicos, segurança pública e previdência relacionados ao consumo abusivo de álcool (gov.br).

Dessa forma, mesmo que a arrecadação com o álcool seja alta, os prejuízos para a sociedade são grandes. Mas, como ocorre com outros setores economicamente relevantes, há forte resistência a qualquer medida que possa restringir o mercado de bebidas alcoólicas.

PROIBIR OU REGULAR? O QUE A HISTÓRIA NOS ENSINA

A Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933) é um dos exemplos mais citados para argumentar contra a proibição do álcool. A tentativa de eliminar a venda de bebidas alcoólicas resultou no fortalecimento do crime organizado e no surgimento de um mercado clandestino, sem controle de qualidade e ainda mais perigoso para os consumidores.

Diante desse histórico, a questão que se coloca não é se a proibição funcionaria, mas sim se existem formas mais eficientes de reduzir os danos do álcool sem recorrer a uma medida extrema.

Países como Islândia e Canadá adotaram políticas públicas eficazes para desestimular o consumo excessivo de álcool, sem proibir sua comercialização. Entre essas medidas estão:

• Aumento dos impostos sobre bebidas alcoólicas, tornando-as menos acessíveis;

• Restrições rigorosas à publicidade, impedindo a associação entre álcool e felicidade, sucesso ou atração social;

• Campanhas educativas, ensinando desde cedo os riscos do consumo de álcool.

No Brasil, ainda há muito espaço para aprimorar a regulação do álcool, especialmente no que diz respeito à publicidade. Enquanto anúncios de cigarros foram proibidos devido aos seus impactos à saúde, as propagandas de bebidas alcoólicas continuam explorando emoções e vendendo a ilusão de que beber é um passaporte para a felicidade.

A MUDANÇA CULTURAL LEVA TEMPO, MAS A DECISÃO É INDIVIDUAL

Mudar uma cultura construída ao longo de milênios não é algo que acontece da noite para o dia. A normalização do consumo de álcool é tão forte que muitas pessoas sequer consideram a possibilidade de não beber. Para muitos, essa decisão só surge quando o álcool já causou danos significativos em suas vidas.

Entretanto, apesar da força da tradição e da influência da publicidade, a decisão de beber ou não ainda é uma escolha individual.

A grande transformação não virá de uma proibição estatal ou de uma revolução social instantânea, mas sim da conscientização de cada pessoa sobre o impacto do álcool em sua vida.

O primeiro passo é questionar:

• Eu realmente preciso beber para me divertir?

• Minha felicidade depende de uma substância?

• Estou bebendo por escolha própria ou por pressão social?

A verdadeira liberdade não está no direito de beber, mas na capacidade de decidir, com total consciência, se o álcool tem um lugar na sua vida ou não.

A MUDANÇA COMEÇA DENTRO DE CADA UM

A venda de bebidas alcoólicas não é proibida no Brasil por uma combinação de fatores culturais, econômicos e históricos. Desde os tempos de Hipócrates, o álcool foi incorporado à sociedade como algo positivo e necessário, uma crença reforçada pela indústria de bebidas até os dias de hoje.

No entanto, isso não significa que cada indivíduo precise seguir esse padrão. A decisão de não beber pode ser difícil em um mundo onde o álcool está em todos os lugares, mas é uma escolha possível — e, para muitos, transformadora.

Mudar a cultura do álcool no Brasil pode levar gerações, mas a mudança mais importante pode começar agora, com uma única pessoa: você.