O MEDO DE VIVER SEM ÁLCOOL: como atravessar esse abismo
SUPERAR
Rafa Pessato
4/9/2025
O ABISMO ANTES DA PONTE
Ninguém escolhe a dependência, mas todo mundo que decide superá-la precisa fazer uma escolha difícil: atravessar o abismo do desconhecido. O álcool, mesmo quando destrói, ainda oferece algo conhecido. Ele é uma bengala com espinhos. Machuca, mas dá apoio. E é por isso que muita gente sente mais medo da sobriedade do que da própria bebida.
O medo de viver sem álcool não é só um medo qualquer. Ele é existencial. É o mesmo frio na espinha que sentimos quando olhamos para um salto muito alto, sabendo que do outro lado há liberdade, mas entre o salto e a chegada existe apenas o ar – e a dúvida.
Este texto é para você que está nesse vão. Para você que pensa: “Mas e se eu não aguentar?”, “Quem serei eu sem isso?”, “E se a vida só for suportável assim?”
Vamos atravessar juntos. E no caminho, vamos conversar com quem já andou por aqui: um pouco de Kierkegaard, um toque de Viktor Frankl, uma pitada de Lisa Feldman Barrett. Mas sem formalidades. Porque isso aqui é vida real. E na vida real, o medo não é vencido com fórmulas — é atravessado com coragem, companhia e sentido.
O MEDO NÃO É INIMIGO – ELE É SINAL DE QUE VOCÊ ESTÁ VIVO
Kierkegaard dizia que a angústia é a vertigem da liberdade. Quando estamos diante de escolhas reais, sentimos medo porque, de repente, percebemos que somos responsáveis por nossa própria existência.
O medo de viver sem álcool é isso: um chamado profundo para assumir as rédeas da própria vida. E claro que isso assusta. O álcool oferece uma anestesia temporária contra o caos do mundo, da mente, das emoções. Quando ele vai embora, tudo grita. O vazio, o tédio, a solidão, as dores antigas.
Mas veja: o medo só aparece porque existe vida em você. Porque, lá no fundo, há uma parte que quer viver. Se não quisesse, não haveria medo. Haveria desistência. E você não desistiu.
O CÉREBRO E O APEGO À DOR CONHECIDA
Lisa Feldman Barrett, neurocientista, fala sobre como o cérebro humano é um órgão preditivo. Ele prefere a dor conhecida ao desconhecido. Preferimos o inferno que já entendemos ao paraíso que nunca experimentamos.
O álcool, mesmo trazendo sofrimento, é previsível. O corpo se acostuma. O cérebro aprende a depender. Criamos um ciclo onde o prazer é curto e a queda é longa — mas, mesmo assim, é um ciclo familiar.
Parar de beber é desorganizar esse ciclo. É como mover os móveis de uma casa escura: você se bate, tropeça, não sabe onde estão as coisas. Mas com o tempo, acende-se uma luz.
Ação prática: comece a mapear seus rituais com o álcool. Em vez de tentar “não beber”, pergunte-se: “O que estou evitando sentir agora?” Escreva. Leia depois. Você vai se surpreender com o que aparece. Esse é o começo do recomeço.
O MEDO DA IDENTIDADE VAZIA
Muita gente diz: “Não sei quem sou sem beber.” Isso é mais comum do que parece. E está tudo bem. Porque a sobriedade não é só um não. Ela é um espaço para o novo.
Nietzsche dizia que precisamos “nos tornar quem somos”. Mas isso não acontece em um dia. É construção. E para quem viveu muito tempo com o álcool ocupando tudo, é natural sentir que, sem ele, sobra um buraco.
Mas esse buraco não é um fim. É um convite. É onde a nova identidade começa a brotar.
Ação prática: experimente criar novos micro-ritos. Se o copo à noite era um ritual de pausa, troque-o por chá, leitura, banho quente. Parece bobo, mas o cérebro aprende por repetição. É possível reprogramar os significados do fim de dia.
A SOLIDÃO: O MAIOR MEDO ESCONDIDO
Quando perguntamos para alguém por que não consegue parar de beber, muitas vezes ouvimos: “Tenho medo da vida.” Mas, cavando mais fundo, aparece algo ainda mais forte: “Tenho medo de ficar sozinho.”
O álcool, mesmo sendo uma ilusão de companhia, preenche as horas vazias. Sem ele, os fantasmas aparecem: rejeições, abandonos, a falta de amor-próprio.
Frankl dizia que o ser humano pode suportar qualquer dor se tiver um “porquê”. E o que falta, muitas vezes, é esse porquê.
Ação prática: escreva sua carta de propósito. Não precisa ser perfeita. Escreva como se estivesse contando para um amigo o que você quer da vida sem álcool. Guarde essa carta. Leia nos dias difíceis. Ela será sua âncora.
A CORAGEM NÃO É AUSÊNCIA DE MEDO, É AÇÃO APESAR DELE
Muita gente espera “não ter mais medo” para começar a mudança. Mas a verdade é que a coragem nasce no meio do medo. É quando trememos e mesmo assim damos o próximo passo.
A sobriedade não começa com um “não” ao álcool, mas com um “sim” à vida. Mesmo que seja um sussurro, mesmo que doa.
Ação prática: celebre microvitórias. Um dia sem beber? Vitória. Um almoço sem gatilho? Vitória. Uma conversa sincera com um amigo? Vitória. Isso não é pouco. É revolução silenciosa.
O CORPO SENTE, MAS PODE REAPRENDER
Nosso corpo carrega memórias. O som do lacre, o cheiro da cerveja, a sexta-feira à noite — tudo pode ser um gatilho. Mas o corpo também pode criar novas associações.
A neuroplasticidade é real. O cérebro muda com novas experiências. E a memória afetiva também pode ser reprogramada.
Ação prática: crie “novos lugares seguros”. Pode ser uma cafeteria, um parque, uma praça. Vá até lá com frequência. Leve um livro, ouça música. Ensine ao seu corpo que há prazer e descanso em outras atmosferas.
O TEMPO É SEU ALIADO, NÃO SEU INIMIGO
No início, tudo parece eterno. A vontade, a saudade da bebida, o tédio. Mas o tempo é um professor gentil. Ele ensina devagar. E se você insistir um pouco mais, ele começa a te surpreender.
Importante: não apresse as respostas. Viva as perguntas, como sugeria Rainer Maria Rilke. Algumas respostas só aparecem quando paramos de exigir e começamos a sentir.
A SOBRIEDADE COMO POÉTICA DA EXISTÊNCIA
Parar de beber não é apenas uma questão de saúde. É uma questão de estética da alma. É reaprender a viver com sensibilidade. É recuperar os sentidos.
Um café quente numa manhã fria. O riso dos filhos. A música preferida num domingo preguiçoso. A caminhada em silêncio. A dor acolhida com ternura. Tudo isso é vida.
Você não está perdendo algo. Você está se encontrando.
A TRAVESSIA É VOCÊ
Se você sente medo de viver sem álcool, saiba que esse medo é justo. Você foi condicionado, talvez ferido, talvez enganado. Mas você também é capaz. Capaz de atravessar. E de transformar.
Lembre-se: o álcool talvez tenha te anestesiado, mas também te afastou de si. A sobriedade, por mais dura que pareça, é a chance de voltar para casa. E você merece voltar.
E se for difícil, me procure. Ninguém precisa atravessar sozinho.
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