O Abismo e o Carrinho de Compras: ENTRE O EXCESSO E A FUGA

Por que consumimos tanto para nos sentirmos vivos? Uma travessia existencial pelo vazio moderno, a compulsão e o desejo de transcendência.

DESPERTAR

Rafa Pessato

5/21/20254 min read

Vivemos em tempos em que sentir-se vivo parece ter virado um exercício de aquisição. De experiências. De objetos. De corpos. De curtidas. "Logo consumo, logo existo", poderia dizer o novo lema não declarado da subjetividade contemporânea. Mas por trás do cartão de crédito estendido, da tela que não cansa de rolar, da geladeira aberta sem fome e do cigarro aceso sem vontade, algo sussurra: um buraco. Um eco. Um vazio que não se deixa preencher.

Neste artigo, vamos explorar porque, diante do desconforto existencial que nos habita, nos tornamos criaturas de excesso e fuga. E porque, paradoxalmente, isso revela não apenas a nossa dor, mas também o nosso anseio mais bonito: o desejo de transcendência.

O BRILHO NOS OLHOS OU NAS VITRINES?

Vivemos em tempos em que sentir-se vivo parece ter virado um exercício de aquisição. De experiências. De objetos. De corpos. De curtidas. "Logo consumo, logo existo", poderia dizer o novo lema não declarado da subjetividade contemporânea. Mas por trás do cartão de crédito estendido, da tela que não cansa de rolar, da geladeira aberta sem fome e do cigarro aceso sem vontade, algo sussurra: um buraco. Um eco. Um vazio que não se deixa preencher.

Neste artigo, vamos explorar porque, diante do desconforto existencial que nos habita, nos tornamos criaturas de excesso e fuga. E porque, paradoxalmente, isso revela não apenas a nossa dor, mas também o nosso anseio mais bonito: o desejo de transcendência.

O VAZIO COMO PONTO DE PARTIDA: O GRITO SILENCIOSO DA ALMA

O vazio não é doença; é condição. Desde que o ser humano se entendeu como tal, carrega dentro de si um espaço que nenhuma estrutura externa pode ocupar de forma definitiva. Jean-Paul Sartre chamou isso de "nada". Viktor Frankl falou da "vontade de sentido". Clarice Lispector talvez dissesse apenas que é um silêncio que grita.

Esse vazio é parte do pacote de ser humano. Mas em vez de acolhê-lo, tentamos enterrá-lo. A civilização moderna, com sua produtividade feroz, suas vitrines repletas e suas distrações infinitas, oferece ferramentas eficazes para isso: compramos, comemos, bebemos, acumulamos, corremos, trabalhamos até quebrar. Tudo para não parar. Porque, no fundo, sabemos: se pararmos, ele vem. É a insatisfação que impulsiona o ciclo, como um eco do que realmente nos falta.

COMPULSÃO: A FOME QUE NÃO TEM NOME

A compulsão é o movimento que fazemos quando algo em nós está insuportável de ser sentido. Diferente do prazer, que é escolha, a compulsão é fuga. É o uso repetitivo de um comportamento ou substância para aliviar uma dor emocional que nem sempre sabemos nomear.

Você pode chamar de vício, de hábito, de impulso. O que importa é que ali, bem no centro da compulsão, mora um corpo tentando escapar de si. E um desejo legítimo de aliviar a angústia de ser finito, de não saber, de não controlar. Albert Camus, ao explorar o absurdo da existência, nos convida a confrontar essa angústia. Será que a compulsão não é nossa tentativa de adiar esse confronto?

Consumimos porque queremos anestesiar o desconforto. Mas consumimos também porque, por alguns segundos, o ato de consumir nos dá a ilusão de presença. Por um instante, temos a falsa impressão de que "AGORA VAI". Que o próximo item, a próxima experiência, a próxima pessoa, vai nos fazer completos. Mas não faz. E seguimos. A compulsão, afinal, é uma tentativa de transcendência torta.

EXCESSO COMO TENTATIVA DE SENTIDO: PROMESSAS VAZIAS EM EMBALAGENS DE PLÁSTICO

Não consumimos apenas para fugir. Muitas vezes, consumimos para criar sentido. O consumo, hoje, substituiu antigos rituais. Antes, transcendíamos pelo sagrado, pela arte, pela dança, pela contemplação do mistério. Hoje, buscamos êxtase em aplicativos de entrega e em descontos de última hora.

Em um mundo sem grandes narrativas espirituais, o mercado passou a prometer o que antes só os deuses prometiam: felicidade, beleza, segurança, pertencimento. O problema é que essas promessas são feitas em embalagem de plástico, com validade curta. E o que sobra é mais frustração, mais vazio, mais necessidade de comprar de novo. Como já nos alertava a sensibilidade de Cecília Meireles: "Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas". Eu adicionaria: se não tocamos a nossa própria essência para além do que adquirimos.

FUGA: O QUE EVITAMOS QUANDO NOS ENTORPECEMOS?

Ao nos mantermos em movimento constante — seja mental, físico ou digital — evitamos olhar para perguntas que doem. "Quem sou eu sem isso tudo?" "O que sobra quando não estou produzindo, comprando, agradando?" "O que me sustenta quando não tenho distrações?"

A fuga é a negação da travessia. É o medo do deserto. Mas é no deserto que, historicamente, os humanos encontraram revelações. É no silêncio que surgem verdades. E é na pausa que a vida, de fato, pode ser sentida. Martin Heidegger nos lembra que a autenticidade da existência se revela ao enfrentarmos nossa própria finitude, um ato que a fuga tenta incessantemente adiar.

O DESEJO DE TRANSCENDÊNCIA: UM MOTOR LEGÍTIMO E ESSENCIAL

Por trás de todo exagero, há um desejo autêntico. Quando alguém bebe demais, consome demais, trabalha demais, ama demais — há ali, mesmo que de forma confusa, um apelo por algo mais. Esse algo mais é a transcendência: o impulso de sair do estreito de si para tocar algo maior.

A espiritualidade, a arte, a conexão verdadeira, a natureza, o cuidado com o outro — tudo isso são canais possíveis de transcendência não evasiva. Experiências que não nos alienam de nós mesmos, mas que nos reconectam com algo mais essencial, mais vivo, mais sereno. Não somos apenas corpos que consomem; somos almas que anseiam por significado.

ENTRE A FALTA E O FLUXO

Não há problema em desejar. O desejo é força criativa, impulso de vida. O problema começa quando confundimos o desejo com carência infinita, e o prazer com anestesia. O desafio existencial do nosso tempo talvez seja aprender a habitar o vazio sem tentar destruí-lo.

Entre o excesso e a fuga, existe um ponto de virada: a coragem de sentir. De não preencher tudo. De sustentar o desconforto até que ele se transforme. De buscar não só distrações, mas conexões. Não só consumo, mas expressão. Não só alívio, mas sentido.

Consumimos tanto porque, no fundo, queremos viver intensamente. Mas viver intensamente talvez não tenha nada a ver com ter mais, e sim com estar mais. Com estar inteiro. Com estar presente. E, quem sabe, com aprender que não é o "mais" que nos salva — mas o encontro.