ESTAMOS TODOS ANESTESIADOS? O álcool como sintoma de uma cultura do entorpecimento

DESPERTAR

Rafa Pessato

5/5/2025

Por que bebemos?

Talvez essa seja uma das perguntas mais poderosas — e mais evitadas — que podemos nos fazer numa sociedade que normalizou a fuga. Bebemos para celebrar, para relaxar, para nos enturmar, para esquecer. Bebemos porque é cultural, porque é social, porque é “normal”. Mas por trás dessa normalidade está algo mais profundo: uma anestesia emocional generalizada.

Neste artigo, vamos olhar para o álcool não como o problema em si, mas como um sintoma. Um sintoma de uma cultura que, ao invés de nos incentivar a sentir, nos ensina a escapar.

Cultura do entorpecimento: o pano de fundo invisível

Vivemos numa época em que o excesso é regra. Somos bombardeados por estímulos, demandas, ruídos, distrações. Tudo é muito: muita informação, muita cobrança, muita comparação. E no meio disso, pouco espaço para o silêncio, para o descanso genuíno, para a escuta interior.

Não é coincidência que, diante dessa sobrecarga, tantos de nós procurem por “desligar a mente”. E o álcool aparece como um dos atalhos mais acessíveis. É vendido como relaxamento, prazer, recompensa. Mas o que estamos, de fato, tentando desligar?

Estamos tentando desligar o sentir.

A dor de uma vida que perdeu o centro. A angústia de não se reconhecer mais em si mesmo. O vazio de uma rotina que sufoca.

O álcool como anestésico emocional

O álcool, do ponto de vista neuroquímico, afeta diretamente o sistema límbico — responsável pelas emoções. Reduz a atividade do córtex pré-frontal, ligado à tomada de decisões e ao controle inibitório. Em outras palavras: nos deixa mais impulsivos, menos críticos, menos conscientes.

Parece ótimo, não? Uma trégua da mente hiperativa, do excesso de autocobrança, das dores emocionais. Mas essa trégua tem um custo: ela não resolve o que sentimos, apenas adia.

Aos poucos, criamos uma relação de dependência não com a substância em si, mas com a promessa que ela carrega: a promessa de não ter que lidar. E isso não é uma falha individual, mas uma engrenagem cultural.

Uma sociedade que evita o sentir

Desde pequenos, somos ensinados a “não fazer escândalo”, a “engolir o choro”, a “ser forte”. Crescemos associando vulnerabilidade à fraqueza. Sentimentos difíceis — como tristeza, raiva, medo — são tratados como algo a ser contido ou ignorado.

Com o tempo, nos tornamos adultos emocionalmente desconectados, que não sabem nomear o que sentem e, por isso, recorrem a saídas rápidas para lidar com o desconforto.

Essa anestesia coletiva é alimentada por diversos meios:

  • A indústria do entretenimento que distrai sem aprofundar.

  • O marketing que vende felicidade em garrafas, roupas, experiências.

  • A lógica da produtividade que reduz o humano à performance.

O álcool entra aí como um símbolo poderoso: não é apenas uma bebida, é um alívio permitido. Uma válvula de escape socialmente legitimada.

Festa ou fuga? A linha tênue

“Mas não posso nem beber socialmente?” — talvez você esteja se perguntando.

A questão aqui não é demonizar o álcool em si, mas propor uma reflexão honesta: por que você está bebendo? O que está buscando nesse gole?

Não é sobre moral, e sim sobre consciência.

Muitas vezes, o que chamamos de “festa” é, na verdade, uma fuga coletiva. Uma desculpa para baixar as defesas, desabafar, se sentir aceito — sem o incômodo de ter que ser plenamente quem se é.

Quando isso se repete com frequência, o que era prazer vira rotina, e o que era escolha vira necessidade.

A desconexão de si como raiz da compulsão

O que o vício, seja em álcool, comida, redes sociais ou trabalho, tem em comum? Todos são tentativas de preencher um buraco interno, uma ausência de si.

A filósofa Simone Weil dizia que “a infelicidade vem da perda de um centro”. E essa perda nos torna vulneráveis a todo tipo de compensação artificial.

Quando não nos sentimos inteiros, buscamos no externo algo que nos devolva essa inteireza — mesmo que seja por instantes. Mas nenhuma substância externa pode sustentar aquilo que só se encontra na reconexão interna.

A coragem de sentir: um ato revolucionário

Numa cultura que nos incentiva a produzir, performar e manter a aparência de sucesso, sentir virou um ato de coragem.

Sentir tristeza sem se julgar.

Sentir raiva sem se culpar.

Sentir alegria sem medo de perder.

Sentir vazio sem correr para preencher.

O oposto da anestesia é a presença.

E presença exige disponibilidade.

Sobriedade como clareza, não como castigo

Quando falamos em sobriedade, o senso comum ainda associa com privação, rigidez, punição. Mas a sobriedade que propomos aqui é outra: é um estado de lucidez, de autonomia, de reconexão.

Não se trata apenas de parar de beber, mas de parar de fugir de si.

É um caminho de retorno. De aprender a habitar o corpo, escutar a alma, sustentar as emoções sem se perder nelas.

Como diz Gabor Maté, médico e pesquisador de dependência:

“A questão não é por que o vício, mas por que a dor.”

E a resposta está em aprender a conviver com essa dor de forma mais compassiva, mais consciente, mais humana.

O caminho de volta começa com perguntas

Aqui vão algumas perguntas simples, mas transformadoras:

  • O que tenho evitado sentir?

  • Que parte de mim estou tentando calar com o álcool (ou com outros excessos)?

  • O que me assusta no silêncio?

  • Como seria viver com mais presença e menos fuga?

Essas perguntas não exigem resposta imediata. Elas são convites à investigação. E, muitas vezes, abrir espaço para o incômodo já é um sinal de cura.

Reaprendendo o essencial: sentir é humano

Recuperar o contato com nossas emoções não é fácil, especialmente depois de anos anestesiando o sentir. Mas é possível. E vale a pena.

É como afinar um instrumento que estava desafinado há muito tempo. No início, tudo parece estranho, sensível demais. Mas aos poucos, o som da própria verdade volta a vibrar com clareza.

Estar sóbrio não é estar imune à dor. É estar inteiro para atravessá-la.

É parar de correr.

É escolher viver com mais verdade, mesmo que doa.

A presença como antídoto cultural

Sim, talvez estejamos todos anestesiados em algum nível. Não por fraqueza, mas por um sistema que se alimenta da nossa desconexão.

Mas também somos capazes de acordar. De olhar para dentro. De construir uma nova cultura, mais presente, mais honesta, mais sentida.

O primeiro passo é querer sentir de novo.

Se esse texto tocou algo em você, saiba: você não está sozinho.

Estamos, aos poucos, despertando de uma longa anestesia.

E sentir — com tudo o que isso traz — pode ser o início de uma vida mais autêntica.