AUTOCUIDADO NA SOBRIEDADE

FLUIR

Rafa Pessato

5/2/2025

Se você já passou por uma relação difícil com a bebida, sabe que o álcool, por um tempo, parece ser essa válvula de escape que “cuida” da gente. Mas não cuida. Anestesia. Esconde. Confunde. O que começa como um relaxamento vira prisão. Um descanso que cobra caro depois. E a saúde, em todos os níveis, vai pagando a conta.

É nesse cenário que o autocuidado entra como ferramenta de reconstrução — de saúde, de autonomia, de prazer verdadeiro. E mais do que isso: ele vira ferramenta prática e possível de manutenção da sobriedade.

Mas calma, não vamos romantizar. Autocuidar-se dá trabalho, exige presença, intenção, e muitas vezes, coragem. Mas também pode ser leve, criativo, prazeroso.

O QUE O ÁLCOOL FAZ COM A SAÚDE — E POR QUE A RECUPERAÇÃO PRECISA SER INTEGRAL

Antes de falar de autocuidado, é importante olhar com clareza o estrago que o álcool causa. O Transtorno por Uso de Álcool (TUA) é uma condição séria, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema de saúde pública global. O uso crônico de álcool afeta o corpo e a mente de maneiras profundas e nem sempre reversíveis.

Segundo a National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA), beber em excesso por longos períodos pode causar:

  • Danos ao fígado (esteatose hepática, hepatite alcoólica, cirrose)

  • Lesões cerebrais e prejuízos cognitivos

  • Problemas cardiovasculares e imunológicos

  • Distúrbios do sono e do humor

  • Transtornos associados, como depressão e ansiedade

  • Dificuldade de regular emoções e impulsos

Além disso, há o impacto relacional e social: perda de vínculos, de confiança, de presença nas experiências da vida. O corpo sofre, a mente sofre, e a alma também — aquela parte que grita por sentido, por calma, por pertencimento.

A sobriedade, por isso, não pode ser apenas parar de beber. Precisa ser também um processo de reaprender a viver com prazer, sem precisar fugir de si. E é aí que o autocuidado entra com força.

MAS, AFINAL, O QUE É AUTOCUIDADO?

Autocuidado não é uma lista de “coisas boas pra fazer”. É uma postura. Uma prática intencional de atenção, escuta e afeto voltada pra si mesmo. Não é sobre se mimar o tempo todo — mas sobre se responsabilizar com gentileza pela própria vida.

De acordo com a OMS, o autocuidado é definido como:

“A capacidade dos indivíduos, famílias e comunidades de promover a saúde, prevenir doenças, manter a saúde e lidar com doenças e deficiências com ou sem o apoio de um profissional de saúde.”

Mas de uma maneira mais simples, pode ser dito que:

Autocuidado é toda ação que te ajuda a se manter inteiro, presente e em paz com você mesmo.”

E sabe o que é bonito nisso? O autocuidado pode ser pequeno, silencioso e ainda assim revolucionário. Pode ser tomar um banho sem pressa. Pode ser dizer “não” quando todo mundo espera que você diga “sim”. Pode ser sair pra pedalar ou caminhar, ou simplesmente ficar em silêncio por cinco minutos.

Autocuidar-se é dizer pra si mesmo, todos os dias:

“Eu estou aqui. Eu importo. Eu mereço me tratar com respeito.”

POR QUE O AUTOCUIDADO É ESSENCIAL PARA MANTER A SOBRIEDADE

Quando estamos em processo de deixar a bebida e viver com mais clareza, há um vazio que aparece. Não é só a falta do álcool. É a falta do que ele proporcionava: alívio, prazer, pausa, socialização. Se não “ocuparmos” esse espaço com algo que realmente nutre, o risco de recaída é alto.

O autocuidado preenche esse espaço com presença real.

Ele ajuda a:

  • Regular o sistema nervoso (com respiração, movimento, sono de qualidade)

  • Desenvolver autoestima (com pequenas conquistas e consistência)

  • Criar novos circuitos de prazer (liberando dopamina de forma saudável)

  • Reduzir o estresse e ansiedade (com práticas simples e acessíveis)

  • Aumentar a conexão consigo mesmo (e, consequentemente, com os outros)

A neurociência explica que nosso cérebro precisa de novas fontes de recompensa ao deixar um comportamento compulsivo. Se não tiver prazer alternativo, o sistema de recompensa insiste em buscar o antigo. Por isso, o autocuidado não é só “bonito” — é neurobiologicamente necessário.

Fontes como o livro “The Craving Mind”, de Judson Brewer e Jon Kabat-Zinn e pesquisas da Harvard Medical School mostram que práticas de atenção plena, movimento físico e cuidado com o corpo e emoções ajudam a mudar o padrão de comportamento aditivo.

NÃO TEM REGRA: O AUTOCUIDADO PRECISA RESSOAR COM QUEM VOCÊ É

Agora vem a parte boa: não existe uma fórmula certa de autocuidado.

A prática que vai te fazer bem precisa ter a sua cara, o seu gosto, o seu tempo. Pode ser um banho demorado. Pode ser dançar sozinho no quarto. Pode ser cuidar das plantas, fazer crochê, caminhar no parque ou pintar a unha. Pode ser um passeio de bicicleta, um caderno de sentimentos, uma comida feita com calma.

E se você não sabe ainda o que gosta, tudo bem.

Dê-se o direito de experimentar.

Proposta prática:

Escolha um final de semana por mês pra testar um novo tipo de autocuidado. Pode até ser uma brincadeira com você mesmo. “Hoje eu vou ver se cozinhar me traz prazer.” Ou “hoje eu vou sair sem rumo e observar o que me atrai.” Com o tempo, você constrói seu repertório de autocuidados — como uma caixa de ferramentas emocional e sensorial.

Sugestões de atividades para sua caixa de autocuidado (mas só vale o que fizer sentido pra você!)

  • Banho demorado com aromas relaxantes

  • Caminhar ouvindo música ou em silêncio

  • Escrever o que sente (sem filtro) num caderno

  • Academia, yoga, pilates ou qualquer movimento corporal

  • Cuidar da pele, do cabelo, do corpo com intenção

  • Contemplar o céu, as árvores, o mar

  • Cozinhar uma comida gostosa e comer com calma

  • Colocar uma música que te emocione e dançar

  • Meditar, respirar fundo, rezar ou agradecer

  • Ir ao cinema sozinho

  • Pedalar sozinho ou com amigos

  • Desconectar do celular por algumas horas

  • Cuidar da casa como quem cuida de si

  • Chorar sem pressa quando for preciso

  • Rir de algo bobo (isso também é cuidado!)

CUIDAR DE SI NÃO É EGOÍSMO, É FUNDAMENTO

Muita gente sente culpa ao começar a se cuidar. Como se estivesse “deixando os outros de lado”. Mas a verdade é que quando você está bem, você transborda. Quando você está nutrido, consegue dar atenção real, amar com presença, tomar decisões mais conscientes.

E mais: você começa a ver a vida com olhos mais suaves. Começa a se sentir merecedor de estar aqui — sem precisar se anestesiar pra isso.

O AUTOCUIDADO VIRA RITUAL, VIRA CELEBRAÇÃO

Antes, comemorar era sinônimo de exagero. Agora, pode ser sinônimo de presença.

Cada ato de autocuidado pode ser um brinde:

“Eu estou aqui, inteiro, sóbrio, sentindo tudo.”

Pode parecer pouco pra quem vê de fora. Mas pra quem já chorou escondido depois de mais um dia de ressaca, quem já acordou se odiando, quem já viveu no modo sobrevivência — é muito. É tudo.

AUTOCUIDAR-SE É UM ATO RADICAL DE AMOR PRÓPRIO

A manutenção da sobriedade não depende só de força de vontade ou de promessas. Depende de práticas consistentes que lembrem seu corpo, sua mente e seu coração de que vale a pena estar aqui. Sóbrio. Vivo. Inteiro.

E o autocuidado é essa prática. Esse lembrete diário. Esse voto silencioso de que você merece estar bem — mesmo nos dias difíceis.

Então, da próxima vez que pensar em beber para “comemorar” ou “relaxar”, respire fundo e se pergunte:

“Como posso me cuidar agora? Como posso me celebrar de verdade?”

Você vai se surpreender com as respostas que o corpo traz quando a gente escuta com carinho.