ALCOOLISMO FUNCIONAL: o vício por trás da rotina “perfeita”
DESPERTAR
Rafa Pessato
4/14/2025
Fulano de tal acorda cedo, bate ponto, entrega relatório. Tem senso de humor, paga os boletos em dia, participa do happy hour da firma e no domingo faz churrasco para a família. É querido, funcional, produtivo. Só que Fulano bebe. Todo dia. Às vezes para relaxar, às vezes para aguentar. Bebe para não sentir demais, ou para sentir alguma coisa. Mas ninguém nota. Nem ele.
Essa é a engrenagem silenciosa do alcoolismo funcional: o sujeito funciona, mas não vive. Sorri, mas esconde. Trabalha, mas está à deriva por dentro. E é justamente essa aparência de normalidade que o torna tão perigoso. Afinal, como perceber que há um problema quando, do lado de fora, tudo parece estar nos conformes?
O COPO INVISÍVEL: O QUE É O ALCOOLISMO FUNCIONAL?
Diferente do estereótipo clássico do alcoolista — aquele que perde o emprego, a família, a dignidade —, o alcoolista funcional mantém a casa de pé. É médico, advogado, vendedor, professor. Pode ser até alguém que você admira. Pode ser você.
Esse tipo de alcoolismo é velado. É o vício que se esconde atrás de uma agenda cheia, de um sorriso simpático, de um desempenho social impecável. O problema é que ele cresce no escuro, feito mofo na parede bonita: silencioso, mas destrutivo.
QUANDO É DEMAIS?
A Organização Mundial da Saúde define padrões de consumo de risco, mas o ponto central aqui não é o número de doses. É o lugar que o álcool ocupa na vida da pessoa. Bebe todo dia? Sente irritação quando não pode beber? Usa o álcool como anestesia emocional? Justifica o uso com frases como “eu mereço” ou “todo mundo faz isso”?
Esses são sinais que não aparecem no exame de sangue, mas que podem gritar dentro da alma.
Jean-Paul Sartre dizia que estamos condenados à liberdade. Toda escolha é um fardo e, ao mesmo tempo, uma chance. O álcool, muitas vezes, entra como fuga dessa liberdade — como forma de escapar da angústia de existir, das decisões difíceis, da dor que a vida impõe sem manual de instruções.
A embriaguez dá alívio momentâneo, mas aprisiona em um ciclo de repetição. E, como apontou Viktor Frankl, o ser humano só encontra sentido quando encara de frente o sofrimento, em vez de anestesiá-lo.
A NEUROCIÊNCIA DO “SÓ UM GOLINHO”
No cérebro, o álcool ativa o circuito de recompensa, liberando dopamina — o neurotransmissor do prazer. Mas com o tempo, o sistema nervoso se adapta, e o que antes dava prazer agora só evita o desconforto da abstinência. O gole deixa de ser escolha: vira necessidade.
É como um botão que foi apertado tantas vezes que passa a funcionar sozinho. O indivíduo funcional pode achar que está no controle, mas seu cérebro já tomou o volante.
QUANDO A NORMALIDADE ADOECE
A sociedade colabora com essa ilusão de controle. Vivemos uma cultura etílica onde o álcool é o lubrificante social, o símbolo de sucesso, o “remédio” para tudo — estresse, solidão, tédio. O happy hour é quase uma obrigação, a taça de vinho é glamourizada, e quem não bebe é visto como esquisito.
Nesse cenário, o alcoolismo funcional floresce. Porque é fácil esconder algo quando todo mundo está fazendo parecido. É o excesso dentro do padrão, a doença disfarçada de estilo de vida.
A FILOSOFIA DA SOBRIEDADE
Sócrates dizia que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. A sobriedade começa quando esse exame acontece. Não se trata de parar de beber, apenas — mas de questionar o que o álcool representa na sua vida. É anestesia? É fuga? É rotina automatizada?
Mais do que abstinência, a sobriedade verdadeira é consciência. É reaprender a estar presente, a sentir sem fugir, a viver com todas as cores — até as mais escuras.
E SE EU FOR FUNCIONAL DEMAIS?
Se você chegou até aqui, talvez esteja se perguntando: “Será que isso é comigo?” A pergunta, em si, já é um sinal de lucidez. O alcoolismo funcional costuma ser sustentado por um pacto de silêncio — com os outros e consigo mesmo.
Algumas perguntas podem ajudar:
Consigo imaginar um mês sem beber?
Uso o álcool para lidar com emoções difíceis?
Já escondi o quanto ou quando bebi?
Sinto culpa ou preocupação em relação ao meu consumo?
Se a resposta for “sim” para uma ou mais dessas perguntas, vale parar, respirar e buscar apoio. Ninguém precisa chegar ao fundo do poço para mudar de direção.
O QUE FAZER NA PRÁTICA?
Comece com curiosidade, não com culpa.
Em vez de se julgar, investigue. O que o álcool está cobrindo? O que ele está te oferecendo que você sente não conseguir de outra forma?
Reduza com consciência.
Tente passar dias sem beber e observe o que surge. Ansiedade? Tédio? Irritabilidade? Isso é informação valiosa.
Converse com alguém de confiança.
Abrir o jogo com uma pessoa segura pode trazer alívio e clareza.
Procure ajuda especializada.
Há grupos, terapeutas, consultores — como esta que vos escreve — prontos para ajudar quem decide sair do modo automático.
Crie novos rituais.
Se beber virou rotina, é hora de reinventar os momentos. Um chá à noite, um banho demorado, uma caminhada sem pressa — pequenas coisas podem ser grandes aliadas.
Reconstrua seu sentido.
A vida sem álcool pode parecer vazia no começo. Mas esse vazio, se encarado com coragem, vira espaço fértil. Como dizia Camus, “no meio do inverno, descobri em mim um verão invencível”.
NÃO ESPERE DESMORONAR
O alcoolismo funcional é traiçoeiro porque parece que está tudo bem — até que não está mais. A saúde começa a falhar, os relacionamentos ficam frágeis, a mente cansa. Mas é possível mudar antes da queda.
E mudar não é perder: é ganhar presença, clareza, autonomia. É sair do piloto automático e tomar o leme nas mãos.
O DESPERTAR
Na seção “Despertar” deste blog, eu escolhi esse nome porque acredito que a sobriedade é menos sobre lutar e mais sobre acordar. Ver o que antes era invisível. Encarar o que estava sendo encoberto. E, com isso, reconstruir a si mesmo.
O alcoolismo funcional é um grito calado. Mas você pode escutá-lo antes que ele vire colapso. E pode transformar o silêncio em escolha, o cansaço em sentido, o hábito em consciência.
Porque viver de verdade — e não apenas funcionar — é um direito seu.